Erguida antes da fundação da cidade, primeira igreja reverencia mulheres e abriga túmulo de Catarina Paraguaçu 

Quem passa pela Igreja da Graça não imagina a história que há por trás das paredes simples e encobertas por árvores daquele templo religioso. A construção simples, longe dos detalhes em ouro das igrejas mais famosas e imponentes de Salvador, guarda um acervo valioso que se confunde com o surgimento da capital baiana, que celebra 474 anos nesta quarta-feira (29). A igreja foi a primeira de Salvador, de acordo com a Arquidiocese da capital baiana, e foi erguida, inclusive, antes mesmo da fundação da cidade, ocorrida em 1549 por Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil.  

O templo foi construído por volta do ano de 1535, a pedido de Catarina Paraguaçu, a ‘Mãe do Brasil’, cujos restos mortais estão na igreja. O local reverencia as mulheres: além de ter Catarina como benfeitora, a igreja também guarda os restos mortais de Julia Fetal, feminicídio que ficou conhecido como ‘o crime da bala de ouro’, em 1847, e homenageia Nossa Senhora da Graça, cuja imagem no altar foi encontrada em uma embarcação naufragada por volta de 1530.  

Em 2019, o local iniciou seu processo de musealização como forma de preservar e valorizar ainda mais a história abrigada no templo, que foi tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio material e imaterial do Brasil. Esse projeto prevê a implantação de um Centro de Memória que inclui, além de todo o acervo que já consta no Mosteiro de São Bento, que administra a igreja, a repatriação de artefatos históricos que hoje estão em outros países.  

A história da Igreja da Graça evidencia o rico patrimônio cultural de Salvador, que nos últimos anos tem potencializado o turismo religioso. A Prefeitura da capital baiana desenvolve uma série de ações visando fortalecer a atração de milhares de visitantes religiosos que vêm à cidade para festas e templos. Entre as iniciativas está o Caminho da Fé, inaugurado em 2020, na Avenida Dendezeiros, que liga os santuários de Nosso Senhor do Bonfim e Santa Dulce dos Pobres.  

Origem – Embora a igreja tenha sido construída inicialmente por volta de 1535, a estrutura atual foi erguida no século XVIII em alvenaria de pedra e tijolo e passou por reformas nos anos seguintes. O início da construção ocorreu após a volta de Catarina Paraguaçu e Diogo Álvares Correia, que ficou conhecido como Caramuru, da França. Conforme conta o historiador Zé Raimundo Lima, coordenador do Complexo Cultural da Igreja da Graça, Catarina teve um sonho com uma imagem, que seria de Nossa Senhora da Graça.  

“Logo em seguida, após o sonho de Catarina, foi encontrada, num naufrágio na região Sul da Bahia, uma imagem de Nossa Senhora da Graça. Foi então que Catarina pediu que fosse erguida uma igreja. O terreno foi cedido por ela para a construção”, relata ele, que integra o conselho do templo formado por oito pessoas, das mais diversas formações acadêmicas.  

A também historiadora Tanira Fontoura ressalta que “as memórias habitam pessoas, objetos, documentos e lugares. A Igreja de Nossa Senhora da Graça é um desses locais, fruto de uma história de encontro de diferentes culturas e que faz parte da formação do Brasil”. 

Capelão da igreja, Dom Angelo Alves, subprior do Mosteiro de São Bento da Bahia e coordenador do Complexo Cultural do templo, afirma que o local guarda um acervo histórico que precisa ser valorizado. “Mais importante é a compreensão da necessidade de preservar e valorizar a nossa história”, pontua, sobre a necessidade do Centro de Memória.  

O processo de musealização visa tornar a igreja um local de memória, de forma que o rico acervo existente seja disponibilizado para o público por meio de ações de educação patrimonial, construção de um circuito de visitação, atividades artístico-culturais continuadas, inserção no campo do turismo religioso e incentivo à pesquisa, entre outros.  

Embora guarde um vasto conteúdo, o templo hoje não tem grande visitação. Entretanto, já é procurado por agências de viagem até mesmo de outros estados. O local, inclusive, teve uma reforma iniciada, mas a intervenção foi paralisada pouco antes da pandemia e não retornou. Agora, contam os conselheiros do local, eles pretendem retomar as obras e dar seguimento ao processo de criação do Centro de Pesquisa e Memória Catarina Paraguaçu. 

Além dos túmulos de Catarina e de Julia Fetal, o local guarda ainda um acervo valioso com documentos, obras de arte, objetos como lavabos e madeiramento original, além de telas de Manuel Lopes Rodrigues, um dos mais importantes pintores brasileiros do realismo, e peças artísticas do século XVIII.  

Marco – Contudo, há quem diga que a Igreja da Graça não seja a primeira de Salvador, conforme explica o historiador Rafael Dantas, que estuda e pesquisa sobre o templo há mais de dez anos. “É muito comum você ouvir a história de que Igreja da Graça é a mais antiga de Salvador. E eu também concordo que seja. Mas é mais correto falar que a Igreja da Graça disputa com a Igreja da Vitória o título de mais antiga da cidade, porque elas foram iniciadas antes da construção de Salvador, em meados do século XVI, aproximadamente dos anos de 1530, mais ou menos. Então, provavelmente foi construída primeiro a Igreja da Graça, depois da Vitória, e com a chegada dos portugueses foi construída a Capela de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em 1949, depois a Igreja da Ajuda”, afirmou.  

Dantas afirma que o templo da Graça é um marco de Salvador. Ele conta que a igreja, ao longo dos anos, passou por transformações e cita que a construção atual é do século XVIII. “Ela passou por reformas no decorrer do século XIX e início do século XX. Portanto, os altares que tem lá não são barrocos, são neoclássicos dos anos 1800, e as pinturas também. Acontece que temos quadros que são anteriores ao século XVIII, assim como parte da estrutura”, diz. 

Segundo ele, a imagem de Nossa Senhora da Graça é provavelmente uma das mais antigas da cidade, juntamente com outros objetos do acervo. “A Igreja da Graça era um referencial religioso e da urbanidade de Salvador em direção ao eixo sul da cidade e até hoje é evidentemente um importante templo da nossa arquitetura e da religiosidade de Salvador”, frisa.  

Ele destaca também a importância histórica do local, citando também a relevância de Catarina Paraguaçu. “Era uma mulher indígena Tupinambá que foi importantíssima nesse momento do século XVI no sentido de representar um papel diplomático, vamos dizer assim, entre Tupinambás e os portugueses. E ela com Caramuru são responsáveis por essa primeira família brasileira”, salienta.  

Rafael Dantas conta ainda que está desenvolvendo um documentário que conta a história da Igreja da Graça. “Estamos na etapa de arrecadação de recursos para terminar o documentário. O que foi feito até agora foi levantamento histórico para falar sobre a importância da igreja na cidade de Salvador. E esse projeto visa estimular o turismo religioso na cidade”, revela.  

Turismo religioso – Na capital baiana, a Prefeitura desenvolve uma série de ações para estimular o turismo religioso. A cidade conta com mais de 370 igrejas e tem diversos roteiros para os visitantes religiosos que buscam eventos ou templos. Mais informações sobre roteiros e atrações podem ser acessadas no site www.salvadordabahia.com .  

Em 2020, a gestão municipal entregou o Caminho da Fé, que fica entre o Santuário de Dulce dos Pobres e a Igreja do Bonfim. O investimento em todo o projeto é de R$18,2 milhões. A intervenção contemplou instalação de passeios ampliados, novas faixas de pedestre no nível da pista, itens de acessibilidade, nova pavimentação, fiação subterrânea das telefonias, iluminação em LED, drenagem, paisagismo, mobiliário urbano e marcos religiosos. 

Em parceria com a Pastoral do Turismo (Pastur) da Arquidiocese de Salvador, a Prefeitura, por meio da Secretaria de Cultura e Turismo (Secult), lançou também a Websérie Caminhos de Fé, que traz roteiros imersivos que vivenciam igrejas, santuários, museus e templos católicos na capital baiana. Os filmes trazem uma linguagem poética e atual, despertando a vontade tanto de devotos quanto curiosos, de conhecerem os lugares apresentados. Estão na websérie quase 30 destinos, todos com descrição de localização, uma forma de estimular a visitação dos locais. 

“Salvador é uma cidade que tem um potencial muito grande para o turismo religioso e a prefeitura tem investido para potencializar essa vocação. O Caminho da Fé, da Igreja da Conceição ao Bonfim, é exemplo disso. Essa região foi visitada por três santos católicos e poucas cidades do mundo têm esse atrativo”, ressalta o diretor de Turismo da Secult, Gegê Magalhães. 

Segundo ele, a primeira capital do Brasil é uma cidade repleta de igrejas e santuários. “Respira e inspira a fé, em suas diversas formas, e em todos os cantos da cidade. Em poucos lugares do mundo, pode se fazer um turismo religioso tão plural. Continuaremos trabalhando para que mais pessoas queiram conhecer mais da nossa história e nossa cultura, e se sintam atraídas pelo turismo religioso na nossa capital”, informa. 

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