Comunidades quilombolas rurais da Bahia vivem em situação de “Extrema Pobreza”
Famílias de Serra do Queimadão estão entre os 13,7 milhões de brasileiros apontados pelo IBGE Maria Augusta da Luz Nem mesmo as últimas obras realizadas no pequeno distrito de Serra do Queimadão, na região baiana da Chapada Diamantina, têm conseguido afastar os quilombolas que habitam a região da triste linha definida como “Extrema Pobreza”. A comunidade rural, que vive no município de Seabra, próximo a cidadezinha de Boninal, como tantas outras, foi praticamente esquecida pelo poder público e as poucas melhorias que chegaram – fruto da luta incessante de seus moradores – ainda não são, infelizmente, suficientes para garantir dignidade e cidadania. No povoado, o analfabetismo impera entre os adultos. Os moradores não têm direito a médico, emprego, escola ou coleta de lixo e lutam pela sobrevivência. As famílias conservam, por décadas, o mesmo parentesco. Homens, jovens e mulheres, sem esperança, ainda migram para São Paulo em busca de novos horizontes. A comunidade quilombola rural de Serra do Queimadão, no município de Seabra, a 478 quilômetros de Salvador, no coração da Chapada Diamantina, está entre os 13,7 milhões de brasileiros que vivem em situação de “Extrema pobreza”, condição, recentemente, atribuída pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aos brasileiros considerados mais desassistidos. Ao chegar neste pedacinho triste do país, desconhecido para muitos, é difícil não se surpreender com o rigoroso contraste entre a pobreza socioeconômica e a riqueza multicultural da população. O cenário não é de um paraíso tropical, cercado por relíquias naturais, cobiçadas em meio ao “boom” turístico dos novos tempos. Mas, são casas erguidas com adobe – barro cru – e que insistem em se manter de pé, em meio à terra seca, rodeada de mato e caatinga, remontando uma paisagem típica do século passado. A água, que chegou há pouco tempo, foi um dos poucos progressos experimentado pela comunidade. Antes, era suja e barrenta, sem nenhum tratamento, e o sal fazia “arder” o peito do quilombola da Serra. Mesmo após o milagre da água encanada chegar, os moradores ainda se queixam da falta de um agente de saúde. O posto médico, levantado por incentivo da própria comunidade, está totalmente desativado. Passaram-se anos, mas não há médicos, nem nenhum sinal de atendimentos por aqui. Os sanitários domiciliares, depois de muito, foram construídos, mas, como em toda comunidade quilombola, não existem serviços de coleta de lixo por aqui, aumentando os riscos para a saúde. A falta de escola é também uma realidade difícil de enfrentar. A comunidade tenta se organizar através da Associação Quilombola de Serra do Queimadão, com 62 sócios: 25 homens e 37 mulheres. As atividades voltadas para a roça são a tentativa de “ganha-pão” para 50 famílias, residentes na região. Elas cultivam milho, feijão e mandioca, que, como em tantas outras áreas rurais do Brasil, não garantem o desenvolvimento sustentável. “Muita coisa amenizou com ações do programa Bahia Produtiva, do governo estadual, mas para plantar a gente precisa colocar o trator para funcionar e está aí parado esperando eles resolverem”, conta a moradora Zeilda Maria dos Santos Silva, 28. Água salgada – A chegada da água tratada é celebrada pelos moradores e por senhor José Alcides da Silva, 65, presidente da associação e morador do povoado desde que nasceu. “A água que abastecia a localidade era de péssima qualidade e não servia para abastecimento humano. Era muito salgada. Tinha salitre na água”, conta. Zezão, como é conhecido na comunidade. Ele explica que muita gente dizia sentir “uma queimação nos peitos”, quando consumia a água. “Até eu mesmo comecei sentir que estava queimando. A água destruía até resistência de banheiro, chegava até a destruir a parte de alumínio, imagine o intestino da gente. Havia também casos de morte no povoado sem explicação”, denuncia. Cultura, Identidade e Educação – A falta de infraestrutura e condições básicas no povoado leva muitos quilombolas, mesmo com os olhos cheios de lágrima, a irem buscar melhoria de vida em São Paulo. Muitos que ficaram e defenderam o direito de morar–na terra onde nasceram e têm suas raízes e identidade – lutaram incessantemente até a morte e, mesmo fisicamente ausentes, deixaram seu legado e exemplo de resistência. É o caso do ex-presidente da Associação de Serra Baixão Velho, senhor Júlio Cupertino, lembra Zezão. O líder quilombola, falecido, que hoje estaria com 80 anos, fez questão de deixar registrado em suas entrevistas e reuniões que, “num passado bem recente, os negros não sabiam dizer o que eram remanescentes de quilombos, porque as escolas não ensinavam isso. Se dependesse de escola, seria analfabeto de pai e mãe. Naquele tempo, não tínhamos escola pública. Não tinha merenda escolar, cadeira para sentar, nem livros, nem caneta. Naquela época, para escrever, enfiava-se a madeira no tinteiro. Quando pesava um pouco a mão, só riscava o bico. Tinha que levar o banco de casa para estudar”. Em Serra do Queimadão, funcionava um núcleo do PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), do governo federal, que atendia alunos dos 7 aos 14 anos. Mas, as atividades realizadas para amenizar os descompassos sociais e educacionais visíveis foram suspensas há quatro anos. A única escola que atendia alunos da pré-escola até a 3ª série foi fechada. Quem quiser estudar agora tem que se deslocar para a sede de Seabra a mais de 60 quilômetros. Em meio a tanta tristeza, carências, miséria e descaso social, ainda renascem as tradições deste povo, multicultural e rico em suas raízes. A crença religiosa, mesmo sem a celebração de missas e cultos, ganha força na devoção à padroeira Nossa Senhora de Fátima e nos festejos de Cosme e Damião. O batuque – dança africana e brasileira acompanhada de cantigas e de instrumentos de percussão, o reisado – dança dramática popular com que se festeja a véspera e o dia de Reis -, a capoeira (arte praticada pelos jovens da Serra) e outras manifestações da cultura negra estão presentes e, atravessando séculos, ecoam do sangue de cada morador da comunidade. Eles fazem questão de ensinar aos mais novos, para essa festa continuar. São mulheres dos povoados da Lagoa, do Basílio, da Serra, do Baixão e do Agreste, povoados da região. Todo trabalho e vida sofrida dos moradores da Serra também são confirmados por senhor João Cosme dos Santos, 102 anos. As mãos calejadas da roça não deixam mentir. Hoje, sem poder levantar da cama, sofre com a falta de médico e serviço de saúde na comunidade. O posto existe, mas não funciona. Segundo o quilombola centenário, foi ele que fez força para o posto de saúde chegar. “Doei o terreno e até hoje não tenho médico. Aquele espaço que devia funcionar a igrejinha também fui eu, que saí pedindo. Mas, aqui, moça, não tem esse negócio de grandeza, não. A gente é fraquinho de tudo mesmo, se me colocar pelo avesso não sai um tostão, e o que chegar para cá agradeço”, conta, lembrando que, em sua época de moço, trabalhava na enxada para ganhar apenas três tostões por dia – os três centavos de hoje. Política quilombola – A luta em prol das comunidades quilombolas apresentou nos últimos anos um crescimento tímido. Segundo lideranças quilombolas regionais, na Chapada Diamantina, algumas comunidades foram reconhecidas há pouco tempo como quilombolas. O processo depende primeiro da comunidade se auto definir e encaminhar um documento à Fundação Palmares para ser certificada. Depois de reconhecida é que é feito um trabalho de antropologia, geralmente pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e CDA (Coordenação de Desenvolvimento Agrário), da Secretaria de Agricultura do Estado. Depois que os órgãos fazem a regularização fundiária, territorial, adquire-se o título da posse da terra. No último levantamento feito na localidade de Serra, seis das 11 comunidades de Seabra, já haviam finalizado o processo de titulação e delimitação da área. Quatro estavam em andamento e apenas uma (Cachoeira da Várzea/ Mocambo da Cachoeira) não havia aberto o processo ainda. Das 27 comunidades quilombolas existentes na Chapada Diamantina, muitas estão em situação crítica. Os quilombos foram formados pelos escravos que resistiram à escravidão imposta pelo colonialismo e se refugiaram em territórios independentes. Eles desenvolveram formas próprias de organização socioeconômica e cultural, o que manteve os povos remanescentes de quilombos desintegrados dos processos produtivos. Com o reconhecimento da propriedade definitiva das terras que ocupavam, a Constituição de 1988 lançou luz neste isolamento e resgatou essa dívida histórica com aqueles que investiram efetivamente seu trabalho no Brasil colonial e foram destituídos de cidadania no início do século XIX. De acordo com as fontes de pesquisa, as lutas pelo acesso aos direitos quilombolas não cessam. As informações levantadas evidenciam ainda que as comunidades remanescentes de quilombos estão entre as principais riquezas do país. Elas se constituem em espaços de preservação histórica, onde se projetam a identidade étnica e a solidariedade mútua. Atualmente, o Estado da Bahia, juntamente com o Maranhão, possui maior concentração de comunidades quilombolas no Brasil. São mais de 500 comunidades somente na Bahia, das quais 381 já foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura. |