Acarajé, o bolinho de feijão que é uma oferenda sagrada
Além de prato símbolo da Bahia, vendido em todas as esquinas de Salvador, o acarajé é a comida de um orixá. “É uma oferenda feita para Iansã, no terreiro de candomblé. A hóstia está para a igreja católica assim como o acarajé e o abará estão para as religiões de matriz africana. Todos têm a mesma importância”. Quem explica isso é Rita Santos, coordenadora da ABAM, a Associação Nacional das Baianas de Acarajé.
Você pode até não conhecer essa história, mas provavelmente sabe que o acarajé é um bolinho de feijão fradinho frito em azeite de dendê, recheado com camarão, vatapá, caruru. E dono de um sabor único. Comum na região ocidental da África, o prato tem um nome em cada pedaço do continente. É kosai no norte da Nigéria, koose em Gana e akara em outros lugares, embora em nenhum deles seja exatamente igual. Segundo alguns pesquisadores, o acarajé é um parente distante do falafel dos árabes.
A incrível história do Acarajé
Há pelo menos três séculos as baianas do acarajé trabalham em suas receitas, que foram trazidas da África durante o período colonial. Foram as chamadas escravas de ganho, cuja função era ir para rua e trabalhar para as patroas, vendendo mercadorias em tabuleiros, que iniciaram a prática. Elas vendiam de tudo, de mingaus, a peixes fritos, de acarajés a bolos e quitutes, como a cocada.
Embora tivessem que repassar uma grande parte do lucro para suas proprietárias, as escravas de ganho podiam ficar com um pouco do que recebiam. E foi assim que muitas delas sustentaram suas famílias – e houve até casos de mulheres que conseguiram comprar a própria liberdade. Não é à toa que a Rita Santos diz que a baiana do acarajé foi primeira mulher empreendedora do Brasil.
Foi do lucro do tabuleiro das baianas que veio também o dinheiro para criar as irmandades religiosas e financiar os terreiros de candomblé, mais um argumento para a importância religiosa do acarajé. Para as religiões de matriz africana, Iansã, deusa dos ventos e das tempestades, buscou Ifá, um oráculo, para fazer um alimento para seu marido, Xangó, o orixá da justiça, dos raios, do trovão e do fogo. A orientação do oráculo foi que, após comer, Xangô deveria falar para seu povo. Quando ele fez isso, labaredas de fogo começaram a sair de sua boca, o mesmo acontecendo com Iansã.
Tudo no acarajé e nas baianas está repleto de simbolismo, do preparo da receita às roupas das cozinheiras. Quando preparado para Iansã, na forma de oferenda mesmo, o acarajé é sempre frito e sem complementos.
O ofício das baianas continuou após o fim da escravidão e entrou de uma vez por todas no imaginário popular ao longo do século 20. Em 1939, Dorival Caymmi e Carmen Miranda perguntaram o que é que a baiana tem, enquanto Ari Barroso lembrou que “no tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru, mungunzá e umbu”.
Já no século 21, o ofício das baianas do acarajé foi inscrito como patrimônio imaterial da Bahia e patrimônio cultural brasileiro. A importância do prato é tão grande que a FIFA, durante as Copas das Confederações e do Mundo, cedeu a uma forte pressão, e permitiu que as baianas estivessem dentro da Arena Fonte Nova, vendendo seus acarajés, exatamente como faziam há décadas. E pode ser que voos mais altos surjam por aí: há quem defenda que o acarajé seja declarado patrimônio mundial da humanidade, numa petição que seria feita em conjunto por Brasil e Nigéria, onde uma versão do prato é café da manhã de muitos.
Não há estimativas atuais que indiquem quantos acarajés são consumidos por dia em Salvador, mas ninguém duvida que sejam muitos – a Rita garante que, durante muito tempo, as baianas venderem mais acarajés do que o McDonald’s vendia de hambúrgueres na cidade. Segundo a ABAM, 80% das baianas do acarajé são provedoras e chefes da família. E 70% delas, principalmente as mais velhas, não frequentaram a escola. Atualmente, a formação superior já é até algo comum entre as baianas do acarajé mais jovens.